Data: século XX, década de 30.
Autor: Jacob Prudêncio Herrmann
Durante esse nosso percurso, nos deslocamos em direção a Travessa Pesqueiro, lá passamos em frente à casa de seu José, um informante de aproximadamente 60 anos que Luna já conhecia de outras saídas a campo e que por coincidência se encontrava naquele exato momento no pátio, um estreito corredor, atendendo alguém que o chamava da rua. Então, ela logo me apresentou como uma colega que também estava trabalhando no Projeto Habitantes do Arroio. Em nossa breve conversa, perguntamos a ele se poderíamos fazer uma entrevista. Prontamente ele concordou, indagando se iríamos demorar muito. Respondemos que naquele momento nós duas apenas queríamos marcar a entrevista. Propusemos a quarta-feira seguinte, dia 29/04, entre 9h 30mim e 10h – sugestão que foi aceita por Seu José. Ele sugeriu-nos que seria interessante que seu compadre estivesse junto no dia da entrevista, pois os dois são, conforme seu José, os mais antigos moradores dali. “Eu sou o primeiro morador mais antigo e ele o segundo.” Ele ainda destacou a lembrança que tinha do riacho passando atrás da casa do seu compadre. “O riacho passava costeando o portão da casa dele”. Por fim, pedimos a Seu José que nos permitisse tirar uma foto dele. Muito simpático disse: “claro”, colocando-se em pose de fotografia dentro de seu pequeno pátio que é compartilhado com outras famílias. Em seguida nos despedimos e continuamos nosso percurso.
Como bem sabemos, a máquina fotográfica é instrumento que gera curiosidade e interesse das pessoas que observam o fotógrafo. A máquina fotográfica assim como outros instrumentos, como por exemplo, câmera de vídeo gera muitas vezes uma aproximação entre o pesquisador e nativo. Como foi o caso de um rapaz que passava por ali naquele momento. Ele se aproximou muito espontâneo e logo perguntou: “por curiosidade, o que vocês estão fotografando?”. Respondemos que estávamos tirando fotos da região para o nosso projeto e explicamos no que ele basicamente consistia. Ele pensou que nós estávamos registrando aquelas imagens por causa do quilombo. Explicou-nos, então que aquelas terras em outra época pertenceram ao Barão e à Baronesa do Gravataí (Gravathay), nos apontando as ruas que hoje levam esses nomes e onde existiram muitos escravos. Além disso, nos comentou que por ali ficava o “Areal da Baronesa”. Logo a seguir, se despediu de nós, seguindo seu caminho, parecia estar com certa pressa.
Essa questão do “Areal da Baronesa” levantada pelo rapaz me despertou curiosidade e fui pesquisar sobre o assunto. Constatei que o Areal ou Araial ficava na praça Cônego Marcelino e que levava este nome devido à quantidade de areia que o riacho acumulava naquele local no passado. E que foram justamente as constantes enchentes que o riacho provocava que levaram a dona das terras, já debilitada pela velhice, a fazer a divisão daquelas terras e a construção de ruas. Mais adiante, com o fim da escravidão e com a morte da baronesa, este território que anteriormente servia como refúgio de escravos por ter uma vegetação que proporcionava bons esconderijos, tornou-se a moradia de escravos libertos. (Google: Quilombos de Porto Alegre).
Durante este trajeto fomos fotografando o local que é repleto de bares instalados em antigas residências do século anterior. Foi então que novamente a câmera fotográfica serviu de instrumento de aproximação. Enquanto registrávamos diferentes imagens, uma senhora entre 70 e 80 anos de idade nos observava da porta do edifício onde mora. Assim que percebi tive vontade de ir até ela, pois imaginei que ela pudesse ter lembranças daquela região para compartilhar conosco. Porém não foi necessário abordá-la, pois não demorou muito e ela perguntou bastante interessada, o porquê de estarmos fotografando o local. Dona Marieta, como se chama, disse que mora lá desde criança. Nós duas, felizes com a resposta que ela havia nos dado, sobre o tempo que ela mora naquela região, indagamos novamente perguntando se ela tinha lembranças do riacho. Ela disse que sim, nos relatando que quando era moça o seu irmão alugava um barco para eles passearem pelo riacho. Depois de uns minutos de conversa, o marido de Dona Marieta, Seu Omar, chegou, nos cumprimentado com simplicidade e timidez. Em seguida explicamos para eles o porquê daquelas fotos, discursando sobre o projeto e seus objetivos. Durante a conversa, obviamente falamos sobre o “Dilúvio”, o que levou Dona Marieta a se manifestar dizendo: “Na época era chamado de riacho”. Falou-nos do carnaval que acontecia ali, nos dando a entender que este era um evento importante e especialmente bonito. Comentou-nos que quando era moça, ela e as amigas se arrumavam e saiam para festejar o carnaval; contudo o seu “papai” sempre a alertava: “Só até a praça!”. Ela nos mostrou também, na própria Rua João Alfredo, onde ficava a sua antiga casa, nos comentando que atualmente funciona uma garagem naquele local. Disse também, que após sair de lá foi morar na casa que fica ao lado de sua atual residência onde hoje funciona um centro espírita. Além disso, nos apontou com o dedo um local onde antigamente funcionava uma casa de fazenda e em que atualmente, de acordo com Dona Marieta, funciona um depósito. Depois nos mostrou uma casa, que acredito estava sendo reformada para o funcionamento de um bar, explicando-nos: “Aquela casa em construção era do Lupicínio Rodrigues”.
Achei muito interessante os relatos de Dona Marieta, pois enquanto a ouvia falar, lembrei-me da Professora Ana Luiza falando em uma reunião geral do BIEV, sobre Tempo Subjetivo (onde se encontra a narrativa e a lembrança do que já foi vivenciado) e o Tempo do Mundo (onde se encontra o registro do mundo social e cultural). Afinal, dona Marieta quando narra a sua história utiliza-se do Tempo Subjetivo, pontuando sempre com o Tempo do Mundo.
Dona Marieta prosseguiu nos falando sobre a enchente de 1941. Ela contou que felizmente a sua família não perdeu nada, pois seu “papai” e seus irmãos acomodaram os móveis em lugares altos de maneira que a água não os alcançasse. Todavia, tanto Dona Marieta quanto Seu Omar nos disseram que se lembram bem de que para sair de casa, só era possível de barco. Dona Marieta até nos apontou, em relação à parede do edifício, a altura que a água da enchente atingia.
Seguimos o nosso caminho em direção ao Viaduto da Avenida Borges de Medeiros, onde subimos. Paramos para visualizar de forma privilegiada pela altura em que nos encontrávamos a imensidão das ruas que atualmente são pavimentadas com asfalto. Era até mesmo difícil de acreditar que em outra época, o riacho passava por ali, seguindo o seu percurso em direção a Ponte de Pedra. Ainda de cima do viaduto, nós avistamos alguns prédios em meio a uma fumaça, neblina ou poluição, não soubemos identificar, mas que nos chamou a atenção e fotografamos.
O último local em que tivemos em nossa saída a campo foi a Ponte de Pedra, pois eu havia comentado com Luna que eu nunca tinha passado pela famosa ponte e queria muito ir até lá. Foi então, que ela me passou a câmera fotográfica para que eu também pudesse passar pela experiência de fotografar, nessa minha primeira saída a campo. De cima da ponte, logo visualizamos supostamente uma “moradora de rua” que estava alimentando as pombas com farelos. A cena provocada pela ação dessa mulher foi extremamente bonita. Eram centenas de pombos voando rapidamente, mas sem perder a leveza de um pássaro que plana antes de chegar ao chão, ao seu redor, deixando-a um pouco desnorteada, porém aparentemente feliz com todos aqueles pássaros a sua volta.