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terça-feira, 15 de setembro de 2009

O caos cíclico das águas

Algumas idéias sobre as enchentes nos centros urbanos brasileiros. Compartilhamos com o leitor o do blog o artigo de José de Souza Martins:

O CAOS CíCLICO DAS ÁGUAS
José de Souza Martins*


Publicado em O Estado de S. Paulo

[Caderno Aliás, A Semana Revista],
domingo, 13 de setembro de 2009, p. J7

Benedito Calixto, “Enchente da Várzea do Carmo”, 1892 (detalhe)

O caos de terça-feira na região metropolitana de São Paulo, associado à chuva intensa e demorada, não precisa de culpados para ser explicado. Numa cidade que é uma das grandes obras da modernidade, é mais apropriado buscar as causas. Já se sabe muito sobre as causas incivilizadas do caos urbano, sobretudo as causas das enchentes e dos alagamentos, que está no desmatamento, na impermeabilização do solo, no lixo jogado nas ruas e até nos rios. E também as causas dos escorregamentos, que está na ocupação de terrenos impróprios e inseguros, vulneráveis a chuvas intensas, cujas consequências são a queda de casas e a morte de moradores. A cidade há mais de 200 anos briga com a natureza e vem perdendo a briga todos os dias por falta de discernimento político para enfrentar os responsáveis pelos descuidos, os que agem motivados pela precedência de seus interesses privados em relação ao interesse público.


Basta começar por uma olhada na história das águas na região metropolitana de São Paulo para saber que tudo isso vem de longe. Pela época da proclamação da Independência, devido à ocorrência de enchentes na Várzea do Carmo, um engenheiro militar foi designado para medir a profundidade do rio Tamanduateí desde São Caetano até sua foz no Tietê e constatou variações enormes que afetavam a regularidade de suas águas. O desmatamento e a ocupação inadequada das margens matavam o rio navegável. Pouco depois, a retificação do Tamanduateí, na área que é hoje o Parque Dom Pedro II, acentuou a ocorrência de enchentes. De uma delas, a de 1892, deixou Benedito Calixto o testemunho panorâmico do belo quadro, hoje no Museu Paulista: “Enchente da Várzea do Carmo”. Por essa época cogitou a Câmara de construir o nosso primeiro piscinão de contenção de águas, na foz do Rio dos Meninos, em São Caetano. E ficou nisso.

Com a Lei de Terras de 1850 e a alteração do regime fundiário brasileiro, surgiram na cidade modalidades de delinqüência imobiliária, na ocupação imprópria e até indevida de terras, sem nenhum respeito às carências da natureza. Sobretudo, especuladores apropriando- se do que não era seu, em nome do ganho fácil, em terras até então consideradas comunais e reservadas ao bem público. Grandes empresas se envolveram na mutilação da natureza, o que nos penaliza até hoje. No delta do Rio dos Meninos, uma fábrica aterrou um dos braços do rio, para ocupar o terreno, deixou para as águas o canal mais largo, sem alargá-lo para compensar o canal que lhe fora roubado. Até hoje aquele é um dos graves pontos de alagamento da metrópole.

Pior foi o que ocorreu com o Rio Tietê, como mostrou Odette Seabra, da USP, em sua tese sobre “Os Meandros do Rio nos Meandros do Poder”. A Light, em contrato com o governo, obteve o direito de retificar o rio para regularizar o fluxo das águas e beneficiar sua hidrelétrica rio abaixo. Recebeu a recompensa do direito às terras beneficiadas, com ressalva sobre as particulares, cujos proprietários teriam, porém, que indenizá-la pelos benefícios. Após anos de litígios, adquiriu finalmente o direito de revendê-las, o que as inundou de construções a partir dos anos 1950. O problema é que esqueceram de consultar o rio, para saber se ele estava de acordo, e o rio, periodicamente, cobra de volta o seu espaço, inundando ruas e casas.

Um dos melhores teóricos da espacialidade urbana, o sociólogo e filósofo francês Henri Lefebvre, já havia chamado a atenção para a construção da natureza segunda, a natureza produzida, intimamente associada à expansão urbana. Aqui, não houve a construção da natureza segunda com base em pressupostos sociais. Houve apenas a predação da natureza primeira, movida pelos propósitos antissociais da especulação imobiliária, que inunda a cidade com o lixo do crescimento destrutivo. Aqui, adotou-se o pressuposto do barato que sai caro nos planos urbanos que fazem mais concessões à prancheta dos técnicos do que às exigências da natureza, o pressuposto da natureza adormecida para não pagar o preço do que a natureza efetivamente é. O pressuposto de “os outros que se danem”.

O caos de terça foi dramático também porque os paulistanos destes tempos foram reeducados para a pressa, atiçados por equipamentos e tecnologias que aparentemente nos tornam rápidos. Surgiu a impaciente cultura do segundo, em que o minuto parece demora excessiva para baixar uma mensagem de computador, para ouvir um recado, para tomar uma decisão. Aqui se esqueceu que a eficácia dessa cultura da urgência, para não ser postiça, como tem sido, deveria abranger uma infraestrutura protetiva que a tornaria possível e lhe daria sentido. Não tem sentido se basta um temporal para anulá-la.

A irracionalidade não ficou por aí. Uma parte do sistema de comunicação telefônica entrou em colapso naquele dia, porque é irrealisticamente regulado pela falsa suposição de que a natureza não é personagem coadjuvante de nossa vida urbana. Qualquer chuva os telefones calam. Serviços de socorro em situações de catástrofe, como o Corpo de Bombeiros e o Resgate, não podiam ser acionados pois os telefones não funcionavam. Teve gente que ficou sem comer porque não podia usar cartão de crédito para pagar a conta.

Poucos tiveram paciência para prestar atenção num fato do maior relevo que costuma acontecer com a circulação de veículos nos momentos de caos urbano, cessação de funcionamento de semáforos, lentidão. A reinvenção provisória e substitutiva das regras de trânsito. Os motoristas tentando interagir uns com os outros, o que raramente fazem, mediante sinais de cabeça, pequenas movimentações do carro, curtos toques de buzina, estabeleceram regras de alternância nos cruzamentos, abertura de preferencial para ambulâncias, paciência com os impacientes. Na supressão súbita de regras, no caos, as pessoas voltam ao zero e criam novas regras. Como as aranhas que tecem novamente a sua teia. Elas reinventam a sociedade, a sociedade temporária do caos. O problema é que o caos se repete e já não incomoda.

* José de Souza Martins é Professor Emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Dentre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Origens sociais do Eu dividido no subúrbio operário), Editora 34, São Paulo, 2008.

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