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terça-feira, 23 de junho de 2009

A rede de saneamento e a rede de memórias

Seguindo as descobertas iniciais da rede de vizinhança que nossa bolsista Luna Carvalho traçou nas imediações do Areal da Baronesa e da antiga Ilhota, entre os Bairros Cidade Baixa e Menino Deus, realizamos uma nova entrevista. Nosso interlocutor foi o Sr. Marco Antônio Macedo Moreira. As suas lembranças, associadas aos relatos do seu vizinho, Sr. José, e aos relatos de outros moradores que vão surgindo nos diários de pesquisa, nos fazem descobrir novas dimensões territoriais associadas ao antigo curso do “riacho” que passava na região, um braço do Arroio Dilúvio que seguia até o centro da cidade, passando sob a Ponte de Pedra que ainda existe na Av. Borges de Medeiros. O riacho aparece como um limitador dessa experiência territorial, de um microcosmos, onde dividem-se pequenos mundos: de um lado a turma da Ilhota, de outro, o pessoal do Areal, mais distantes, o centro da cidade e os bairros abastados como o Menino Deus. A vida na rua, a sociabilidade expressa no carnaval e nas festas, os laços de pertencimento expressos na solidariedade entre vizinhos, e uma distância maior da “cidade”, representada pelo centro administrativo de Porto Alegre. A água surge como delimitadora dessas divisões territoriais, de certa forma dando uma sensação de refúgio, guardando a vida comunitária de pequena escala, das casas lado a lado, das “avenidas”, terrenos de grande profundidade divididos entre 6, 8 casas, dos becos, das margens. Da porta de casa, Marco Antônio nos conta que enxergava ao longe o viaduto da Avenida Borges de Medeiros, um símbolo da urbanização de uma cidade que começava a se ver como metrópole, nos anos 50, quando as obras de canalização do Dilúvio ocorreram.

Marco Antônio, como outros informantes, nos relatam com prazer essas imagens. Poderíamos nos iludir sob o senso comum do saudosismo de uma cidade que não existe mais. No entanto, assim como os cabungos com o esgoto doméstico eram despejados no Rio Guaíba, ainda hoje, o esgoto doméstico, coletado separadamente do esgoto pluvial, ainda é lançado nas águas do Guaíba, passando por outros processos, é verdade, mas atualizando a relação da cidade com suas águas, que já não são o limite do mundo urbano. Também esses “arquivos”, como se define Marco Antônio (“Eu sou um arquivo vivo dessa rua”) estão ali para afirmar a continuidade de uma forma de viver a experiência da rua compartilhada. A Travessa Pesqueiro ainda é habitada como este microcosmos, as águas correm subterrâneas como essa memória, mas como o próprio Dilúvio em dias de cheia, muitas vezes, elas voltam à tona. Transbordam.

Segue o diário de Luna, e algumas narrativas de Marco Antônio e José.

“19 de maio de 2009.

Chegamos a travessa pesqueiro lá por uma três da tarde, tínhamos ido ao Museu Hipólito da Costa anteriormente. Tocamos a campainha e depois de um tempo de espera abriu a porta um senhor sorridente e falante, seu Marco Antonio, que por sorte tínhamos conhecido no dia da entrevista com seu José, seu compadre. Entrando no portão ele já foi nos indicando que era “só seguir o trem”, um corredor muito comprido, cheio de folhagens, até chegar a entrada de sua casa que era a última. Passamos por umas três casas, habitada por outros parentes.

Entrando na cozinha, onde seria feita a entrevista, a esposa de seu Marco Antonio lavava a louça. Logo de inicio ele já começou a falar, pegou as fotos e foi para a janela mostrar para a Profa. Ana Luiza, onde passava o riacho, nos fundos do seu quintal. Possui um álbum cheio de fotografias antigas, da família com os vizinhos, da frente da casa que existe desde 1915, do pai e do avô fazendo pose com espadas, e a tão famosa foto que havia falado bastante no dia que lhe conhecemos, o riacho visto dos fundos de sua casa, com casas da João Alfredo ao fundo. A primeira coisa que contou foi dos “cabungos”, recipientes que antes dos sistemas de esgoto guardavam os dejetos de cada casa, e semanalmente eram trocados, sendo levados para um trapiche perto do antigo Estaleiro Só, na Lomba do Asseio. A sujeira era despejada e o cabungo lavado.

Seu Marco Antonio, uns anos mais novo que seu José se lembra mais da fase do arroio já aterrado, “aquele chão batido, tudo vermelho”. Segundo ele quando se deu conta já não havia mais riacho. Se lembrou ao longo da entrevista dos trajetos que fazia nessa época, a partir da Quatro Jacós até a ponte de pedra, recordando das brincadeiras no “areão”. Assim como seu José, lembrava de tudo com aparente saudade, quando falava da família, principalmente os avós com quem pareceu ter tido uma boa relação. Vindo de Portugal da região de Trás dos Montes, o avô de seu Marco Antonio trocou de nome quando chegou ao Brasil, trabalhou em muitos lugares e foi quem construiu a casa da frente onde hoje funciona uma marcenaria. Tinha na família também um tio que jogava búzios, quem lhe deu muita força para entrar na CEEE, onde trabalhou um bom tempo de sua vida, e viu inclusive a mudança da sede que ficava no centro ir para a inabitada Avenida Ipiranga.

Seu Marco Antonio, assim como seu José e os outros antigos moradores que temos encontrado na Cidade Baixa, ficou um bom tempo falando do carnaval, dos puxadores de samba que eram imbatíveis, do rei Momo Lelé que ainda é vivo, e de uma mudança depois da década de setenta quando começaram a vir escolas de São Jerônimo com seus carros alegóricos até então nunca vistos por ali. Falou que seu avô, simpatizante do bloco Nós os Comandos fazia todo ano uma espécie de cerimônia, onde entregava uma lanterna que o bloco carregaria no desfile.

Noutra parte da entrevista contou dos caminhões de gelo e lenha, e de uma feira realizada perto da foz, onde se reuniam no final das tardes de sábado produtores autônomos com frutas e legumes de ótima qualidade e bom preço. Também um criador de porcos da ilha da pintada, que com os pedaços de carne a tiracolo andava pelas ruas. E de uma companhia apicultora, Mel Cardeal, que era distribuído por umas carroças verdes bem pintadas.

Referiu-se ao jogador de futebol Tesourinha e sua família, moradores do terreno ao lado por muitos anos, com muito carinho, dizendo serem vizinhos excepcionais. Recordou que seu pai já mais velho, brincava com as pessoas da casa, jogando coquinhos para o outro lado da cerca que divide os dois terrenos. Lembrou também da mãe de Tesourinha, que ajudou muito sua avó em períodos de dificuldade, dando os produtos da feira recém comprados de bom grado. Atualmente parece que a família de Tesourinha mora na Restinga, para onde foram boa parte dos moradores da região após as obras de “melhorias” da região, um bairro muito distante do Areal. Quanto aos outros moradores da rua, disse ter antes da construção dos prédios, muitos conjuntos de casas, chamados “avenidas”, com moradores que se mudavam constantemente. Nesses conjuntos sempre muitas crianças moravam, fazendo de dia sempre ter movimento na Travessa.

Já no final da entrevista, seu Marco Antonio entrou para dentro da casa e apareceu com uma espada e uma baioneta, conservadas desde o tempo de seu avô, e uma coleção de moedas também pertencentes a família a bastante tempo. Pelo que contou, gosta muito de guardar coisas antigas.

Morador a vida toda da Travessa Pesqueiro, Marco Antonio construiu sua casa nos fundos da de seus pais e avós, e parece gostar muito da vida com a vizinhança com quem sempre teve boa relação, se orgulhando muito de ser hoje um dos moradores mais antigos. Menino naquela época, andou muito pelas ruas e como pode ser visto na entrevista possui hoje um arsenal de lembranças guardadas com muito carinho, as quais gostamos muito de fazê-lo imaginar."

2 comentários:

Cabreira disse...

Parabéns pelo Blog, fui morador da rua Barão do Gravatai na década de 70, e me identifiquei com o assunto, até porque, vivenciei alguns fatos relatados. Conheço o José e o Marco Antônio, naõ sei se eles lembrariam de mim.Gostaria de ver imagens da Ilhota e da Praça Garibaldi com o antigo mercado de peixes, para saber onde passava o riacho.
Mais uma vez parabéns.

Lucas disse...

meu paaai,o seu maarco *___*,grande homem

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