No que a pesquisa sobre a memória ambiental urbana pode ajudar na compreensão da polêmica da ocupação da orla? A forma como entendemos a trajetória dessa relação da cidade com sua orla reflete nos projetos para o futuro dessa relação. A transformação desse lugar encontra ecos na própria memória da canalização do Arroio Dilúvio - que fez surgir uma área muita valorizada onde havia um “vazio” na cidade, a Avenida Ipiranga.
Dia 23 de agosto de 2009 ocorre mais um capítulo das transformações na orla de Porto Alegre. Um votação coloca em jogo o destino da “Ponta do Melo”, do “Pontal do Estaleiro”, da “Lomba do Asseio”. Um lugar que até pouco tempo atrás parecia não ter a menor importância no cotidiano da cidade, é agora um território polêmico.
O local onde se projeta erguer o empreendimento “Pontal do Estaleiro” sobre as ruínas do Estaleiro Só S.A. é descrito como um local abandonado pela cidade, esquecido, perigoso até. Uma descrição que convence, se tudo que sabemos dele é o que se pode observar ao contemplar o mato tomando conta do lugar, os restos da antiga ocupação. Mas essa é uma imagem bem elaborada, uma ruína é tão produto da ação humana quanto uma construção. A imagem de abandono do local, o vazio que se cria neste canto da orla é uma jogada clássica do modelo de ocupação urbana brasileiro, como demonstram inúmeros estudos sobre o assunto – o poder público investe na dotação de infra-estrutura de saneamento, estrutura viária, e então, em um curto espaço de tempo, terrenos se valorizam imensamente, grandes empreendimentos se viabilizam.
Em 1888 essa ponta ganhou o nome de “Ponta do Melo” em função da propriedade que ali existia e que não incluía a orla. A beira do Guaíba era uma área pública de terras marinhas. Naquele local, no início do século XX foi construído um trapiche para o despejo dos cubos, dos cabungos, com dejetos recolhidos das casas de famílias da cidade. Uma estrada de ferro foi feita para levar o esgoto doméstico da cidade até o trapiche, para ser então despejado no Guaíba. A região ficou conhecida com o nome de Lomba do Asseio, que assim como o cheiro dos cabungos, ainda está presente na memória de muitos moradores da cidade, como nosso interlocutor, Sr. Marco Antônio, morador do antigo Areal da Baronesa:
http://habitantesdoarroio.blogspot.com/2009/06/rede-de-saneamento-e-rede-de-memorias.html
Como atesta o artigo de Elmar Bones, no Jornal Já, a área permaneceu pública, “propriedade do Estado do Rio Grande do Sul em 1944, quando foi devolvida ao município de Porto Alegre e, seis anos depois, concedida pela prefeitura à empresa Só & Cia, então a mais tradicional ferraria e fundição da cidade que pretendia construir um estaleiro no local. Inaugurado em 1952, o Estaleiro Só, tornou-se uma das maiores empresas do Rio Grande do Sul. Tinha 1.200 empregados em 1967, quando a Câmara Municipal votou a lei 3.076 autorizando o resgate do terreno, isto é, a transferência definitiva da sua propriedade para o Estaleiro Só... Mas a mudança não foi efetivada na época. Pouco depois, em dificuldades, o Estaleiro Só foi vendido para a Empresa Brasileira de Indústria Naval (Ebin), do Rio de Janeiro, com o aval do governo federal. Só nove anos depois, em 1976, foi assinada, pelo então prefeito Guilherme Socias Vilella, a “escritura pública de remissão de foro”, ou seja, a transferência efetiva da propriedade do terreno para a empresa.”
http://www.jornalja.com.br/2009/04/30/pontal-do-estaleiro-na-origem-uma-area-publica-2/
O Estaleiro Só, estabelecendo então conexões com a indústrial naval no país, teve um grande crescimento, que entra em declínio a partir da década de 90, quando diminuem os interesses no setor em Porto Alegre. Com a empresa falida em 1995, o terreno foi levado à leilão em 1999, sendo comprado por um grupo de empresas por R$ 7,2 milhões, mas permanecia ainda com seus usos definidos por lei, impedindo atividades residenciais, comerciais e de serviço. Em 2002, foi aprovada a Lei Complementar nº 470, que definiu os padrões de construção permitidos no local, autorizando a construção de empreendimentos comerciais.
Enquanto isso, toda essa região passava por grandes transformações, como a remoção da conhecida “Vila Cai-Cai” e a construção de um hipermercado em seu lugar, a canalização do Arroio Sanga da Morte, a construção do Museu Iberê Camargo, a construção de um Shopping Center, a duplicação da Avenida Diário de Notícias e a remoção de novas habitações populares. Com todos estes investimentos, o terreno na orla do Guaíba, uma área que por lei é de interesse público, cedida ao grupo de empresas por 7,2 milhões em 1999, já se encontrava valorizada em R$ 150 milhões em 2006. E agora, com o grande aumento da circulação de pessoas na região, a Ponta do Melo é tudo, menos abandonada. A aparente ruína é, na verdade, uma área de grande beleza natural, tomada por vegetação que é importante para a manutenção da dinâmica hídrica da orla, para a circulação dos ventos, e que certamente não comporta o aumento de esgoto doméstico que o empreendimento causaria. Por outro lado, é um lugar ideal para a construção de um parque ou uma área pública de lazer, dando continuidade aos usos da orla que ocorrem no Parque Marinha do Brasil e na orla que segue a Av. Guaíba.
Pouca gente sabe que o Parque Marinha do Brasil se encontra num aterro que foi realizado, originalmente, para construção de empreendimentos residenciais. O aterro da Praia de Belas, antiga forma que a baía da cidade possuía, era mais uma jogada do mercado imobiliário, na década de 1960. Felizmente, o empreendimento não despertou interesse de mercado, pois havia ainda receio de uso residencial do imenso aterro. A área acabou sendo destinada para uso público, em lei promulgada em 1967, sendo hoje, um dos parques mais importantes da capital.
A área da Ponta do Melo parece, no entanto, seguir outros caminhos nos embates legais. Em 7 de junho de 2006, o Jornal do Comércio, de Porto Alegre, já noticiava o seguinte:
“- As pretensões do empreendedor só serão viabilizadas, com a alteração da lei complementar n.º 470, de 2002, que, entre outras coisas, veda a construção de prédios residenciais naquele trecho da orla do Guaíba. O diretor-presidente da SVB Participações, Saul Veras Boff, o diretor do grupo Maggi, Fischel Baril e o arquiteto Jorge Debiagi já apresentaram, em maio, ao prefeito José Fogaça, um esboço do projeto. O passo seguinte será convencer os vereadores de Porto Alegre a alterar a lei.”
http://www.ecoagencia.com.br/?open=artigo&id===AUVZ0cWtGZXJlVaVXTWJVU
Em 2009, a alteração foi votada e aprovada pela câmera de vereadores, mas devido à forma como foi votada, e com a grande manifestação de descontentamento de entidades profissionais, associações ambientalistas e da população em geral, o Prefeito José Fogaça vetou a alteração, abrindo para consulta popular a decisão de aprovar ou não atividade residencial neste espaço da orla do Guaíba.
Sobre esse processo, ver a matéria no Jornal Já: http://www.jornalja.com.br/2009/04/29/pontal-do-estaleiro-uma-lei-sob-medida-1/
Se podemos tirar algum proveito dessa história toda, é, pelo menos, o fato de que essa se tornou uma questão pública para a capital, tendo gerada toda uma comunidade ética, voltada para o debate do assunto.
Dia 23, a votação responde à pergunta, um tanto quanto estranha:
“Além da atividade comercial já autorizada pela Lei Complementar nº 470, de 02 de janeiro de 2002, devem também ser permitidas edificações destinadas à atividade residencial na área da Orla do Guaíba onde se localiza o antigo Estaleiro Só?”
As respostas disponíveis:
1 – ( ) NÃO
2 – ( ) SIM
Confira seu local de votação, das 9h às 17h:
http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/cs/usu_doc/local_de_vota_por_zona.pdf
Rafael Victorino Devos
bolsista do projeto "Habitantes do Arroio"
Dia 23 de agosto de 2009 ocorre mais um capítulo das transformações na orla de Porto Alegre. Um votação coloca em jogo o destino da “Ponta do Melo”, do “Pontal do Estaleiro”, da “Lomba do Asseio”. Um lugar que até pouco tempo atrás parecia não ter a menor importância no cotidiano da cidade, é agora um território polêmico.
O local onde se projeta erguer o empreendimento “Pontal do Estaleiro” sobre as ruínas do Estaleiro Só S.A. é descrito como um local abandonado pela cidade, esquecido, perigoso até. Uma descrição que convence, se tudo que sabemos dele é o que se pode observar ao contemplar o mato tomando conta do lugar, os restos da antiga ocupação. Mas essa é uma imagem bem elaborada, uma ruína é tão produto da ação humana quanto uma construção. A imagem de abandono do local, o vazio que se cria neste canto da orla é uma jogada clássica do modelo de ocupação urbana brasileiro, como demonstram inúmeros estudos sobre o assunto – o poder público investe na dotação de infra-estrutura de saneamento, estrutura viária, e então, em um curto espaço de tempo, terrenos se valorizam imensamente, grandes empreendimentos se viabilizam.
Em 1888 essa ponta ganhou o nome de “Ponta do Melo” em função da propriedade que ali existia e que não incluía a orla. A beira do Guaíba era uma área pública de terras marinhas. Naquele local, no início do século XX foi construído um trapiche para o despejo dos cubos, dos cabungos, com dejetos recolhidos das casas de famílias da cidade. Uma estrada de ferro foi feita para levar o esgoto doméstico da cidade até o trapiche, para ser então despejado no Guaíba. A região ficou conhecida com o nome de Lomba do Asseio, que assim como o cheiro dos cabungos, ainda está presente na memória de muitos moradores da cidade, como nosso interlocutor, Sr. Marco Antônio, morador do antigo Areal da Baronesa:
http://habitantesdoarroio.blogspot.com/2009/06/rede-de-saneamento-e-rede-de-memorias.html
Como atesta o artigo de Elmar Bones, no Jornal Já, a área permaneceu pública, “propriedade do Estado do Rio Grande do Sul em 1944, quando foi devolvida ao município de Porto Alegre e, seis anos depois, concedida pela prefeitura à empresa Só & Cia, então a mais tradicional ferraria e fundição da cidade que pretendia construir um estaleiro no local. Inaugurado em 1952, o Estaleiro Só, tornou-se uma das maiores empresas do Rio Grande do Sul. Tinha 1.200 empregados em 1967, quando a Câmara Municipal votou a lei 3.076 autorizando o resgate do terreno, isto é, a transferência definitiva da sua propriedade para o Estaleiro Só... Mas a mudança não foi efetivada na época. Pouco depois, em dificuldades, o Estaleiro Só foi vendido para a Empresa Brasileira de Indústria Naval (Ebin), do Rio de Janeiro, com o aval do governo federal. Só nove anos depois, em 1976, foi assinada, pelo então prefeito Guilherme Socias Vilella, a “escritura pública de remissão de foro”, ou seja, a transferência efetiva da propriedade do terreno para a empresa.”
http://www.jornalja.com.br/2009/04/30/pontal-do-estaleiro-na-origem-uma-area-publica-2/
O Estaleiro Só, estabelecendo então conexões com a indústrial naval no país, teve um grande crescimento, que entra em declínio a partir da década de 90, quando diminuem os interesses no setor em Porto Alegre. Com a empresa falida em 1995, o terreno foi levado à leilão em 1999, sendo comprado por um grupo de empresas por R$ 7,2 milhões, mas permanecia ainda com seus usos definidos por lei, impedindo atividades residenciais, comerciais e de serviço. Em 2002, foi aprovada a Lei Complementar nº 470, que definiu os padrões de construção permitidos no local, autorizando a construção de empreendimentos comerciais.
Enquanto isso, toda essa região passava por grandes transformações, como a remoção da conhecida “Vila Cai-Cai” e a construção de um hipermercado em seu lugar, a canalização do Arroio Sanga da Morte, a construção do Museu Iberê Camargo, a construção de um Shopping Center, a duplicação da Avenida Diário de Notícias e a remoção de novas habitações populares. Com todos estes investimentos, o terreno na orla do Guaíba, uma área que por lei é de interesse público, cedida ao grupo de empresas por 7,2 milhões em 1999, já se encontrava valorizada em R$ 150 milhões em 2006. E agora, com o grande aumento da circulação de pessoas na região, a Ponta do Melo é tudo, menos abandonada. A aparente ruína é, na verdade, uma área de grande beleza natural, tomada por vegetação que é importante para a manutenção da dinâmica hídrica da orla, para a circulação dos ventos, e que certamente não comporta o aumento de esgoto doméstico que o empreendimento causaria. Por outro lado, é um lugar ideal para a construção de um parque ou uma área pública de lazer, dando continuidade aos usos da orla que ocorrem no Parque Marinha do Brasil e na orla que segue a Av. Guaíba.
Pouca gente sabe que o Parque Marinha do Brasil se encontra num aterro que foi realizado, originalmente, para construção de empreendimentos residenciais. O aterro da Praia de Belas, antiga forma que a baía da cidade possuía, era mais uma jogada do mercado imobiliário, na década de 1960. Felizmente, o empreendimento não despertou interesse de mercado, pois havia ainda receio de uso residencial do imenso aterro. A área acabou sendo destinada para uso público, em lei promulgada em 1967, sendo hoje, um dos parques mais importantes da capital.
A área da Ponta do Melo parece, no entanto, seguir outros caminhos nos embates legais. Em 7 de junho de 2006, o Jornal do Comércio, de Porto Alegre, já noticiava o seguinte:
“- As pretensões do empreendedor só serão viabilizadas, com a alteração da lei complementar n.º 470, de 2002, que, entre outras coisas, veda a construção de prédios residenciais naquele trecho da orla do Guaíba. O diretor-presidente da SVB Participações, Saul Veras Boff, o diretor do grupo Maggi, Fischel Baril e o arquiteto Jorge Debiagi já apresentaram, em maio, ao prefeito José Fogaça, um esboço do projeto. O passo seguinte será convencer os vereadores de Porto Alegre a alterar a lei.”
http://www.ecoagencia.com.br/?open=artigo&id===AUVZ0cWtGZXJlVaVXTWJVU
Em 2009, a alteração foi votada e aprovada pela câmera de vereadores, mas devido à forma como foi votada, e com a grande manifestação de descontentamento de entidades profissionais, associações ambientalistas e da população em geral, o Prefeito José Fogaça vetou a alteração, abrindo para consulta popular a decisão de aprovar ou não atividade residencial neste espaço da orla do Guaíba.
Sobre esse processo, ver a matéria no Jornal Já: http://www.jornalja.com.br/2009/04/29/pontal-do-estaleiro-uma-lei-sob-medida-1/
Se podemos tirar algum proveito dessa história toda, é, pelo menos, o fato de que essa se tornou uma questão pública para a capital, tendo gerada toda uma comunidade ética, voltada para o debate do assunto.
Dia 23, a votação responde à pergunta, um tanto quanto estranha:
“Além da atividade comercial já autorizada pela Lei Complementar nº 470, de 02 de janeiro de 2002, devem também ser permitidas edificações destinadas à atividade residencial na área da Orla do Guaíba onde se localiza o antigo Estaleiro Só?”
As respostas disponíveis:
1 – ( ) NÃO
2 – ( ) SIM
Confira seu local de votação, das 9h às 17h:
http://lproweb.procempa.com.br/pmpa/prefpoa/cs/usu_doc/local_de_vota_por_zona.pdf
Rafael Victorino Devos
bolsista do projeto "Habitantes do Arroio"